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Impedimentos Consanguíneos


Marcelo Meira Amaral Bogaciovas

O Concílio de Trento (1545-1563) fez reiterar uma antiga determinação da Igreja Católica (a Bíblia se ocupa do assunto, inclusive) que procurava impedir o casamento entre parentes dentro do 4º grau de consangüinidade, com o intuito de diminuir o nascimento de crianças com problemas hoje denominados genéticos. Era o chamado impedimento consangüíneo no Direito Canônico e, para se obter licença para o matrimônio, fazia-se necessária uma dispensa do Papa. Este regularmente delegava poderes aos bispos para dispensarem os casos de parentescos não muito próximos. Ao Papa reservavam-se os parentescos muito apertados e múltiplos, onde poderia haver inclusive o envolvimento de razões de Estado.

A matéria depois foi largamente tratada pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas, e ordenadas pelo Illustríssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Sebastião Monteiro Davide, bispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade: propostas, e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. S. Paulo, 1853, Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes), livro 1º, título LXVII, "Dos impedimentos do matrimônio; da prova que para eles basta, e dos que são obrigados a descobri-los", mais exatamente na parte que trata de "Os impedimentos dirimentes são os seguintes": "4. Cognação: é esta de três maneiras, natural, espiritual, e legal. Natural, se os contraentes são parentes por consangüinidade dentro do quarto grau. Espiritual, que se contrai nos sacramentos do batismo, e da confirmação, entre os que batizam e o batizado, e seu pai e mãe; e entre os padrinhos, e o batizado e seu pai e mãe; e da mesma maneira no sacramento da confirmação. Legal, que provém da perfeita adoção, e se contrai este parentesco entre o perfilhante e o perfilhado e os filhos do mesmo que perfilha, enquanto estão debaixo do mesmo poder ou dura a perfilhação. E bem assim entre a mulher do adotado e adotante e entre a mulher do adotante e adotado." A Igreja mandava fazer pregões nas portas das igrejas antes da celebração do matrimônio para que os paroquianos se manifestassem em tempo se haveria algum impedimento entre os noivos. Estes, aqui chamados de oradores, realizavam os banhos (proclamas do casamento), processo no qual deveriam mostrar que eram livres (solteiros ou viúvos e não terem prometido casamento a outra pessoa) e que eram batizados. Havendo parentesco dentro do ’grau proibido’ deveriam proceder a dispensa. Os banhos ficariam depositados nos arquivos paroquiais e as dispensas matrimoniais nos arquivos das câmaras eclesiásticas dos bispados.

O Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (ACMSP) mantém a guarda de processos (No ACMSP os banhos e as dispensas matrimoniais são arquivados como dispensas matrimoniais, o que na verdade se constitui em um equívoco. Deveriam ter sido catalogados distintamente) de banhos e de dispensas matrimoniais a partir do século XVII, antes mesmo da criação do bispado, o que mostra que muitos desses papéis foram remetidos de volta às paroquias de origem. São documentos de extrema importância para estudos genealógicos, históricos e sociais. No caso de São Paulo houve algumas bulas papais, concedidas à Companhia de Jesus, que dispensavam do parentesco os descendentes de neófitos (índios). Um simples depoimento dos oradores, corroborado pelo de testemunhas, era o suficiente para se conceder a dispensa em tais casos; curiosamente sem haver provas e nem ao menos mencionar o grau de parentesco entre o orador e o elemento indígena. O processo (ACMSP, processo nº 4-1-1, fls. 1 a 4-v.) mais antigo existente no ACMSP, entre Mateus Corrêa Leme e Cecília Ribeiro, em 1667, na vila de Itu, já faz uso desse expediente. Em outra dispensa matrimonial (ACMSP, processo nº 4-1-2, fls. 42-v e 43), promovida entre os oradores Baltazar do Rego Calheiros e Luzia Rodrigues de Almeida, a 2 de outubro de 1693, da cidade do Rio de Janeiro, o Chantre João Pimenta de Carvalho, concedeu dispensa aos noivos, apesar do impedimento de consangüinidade no 4º grau simples, explicando que fora "concedida por delegação que em nos fes Sua Illustrissima em virtude do breve nelle concedido para dispensar e delegar o mesmo poder pelo Santissimo Papa Inocensio undessimo no ano de i688 o qual foi aceito neste Bispado no de i689 per tempo de dez ano".

Iguais pretextos vêm transcritos nas dispensas entre Bartolomeu da Rocha Pimentel com Úrsula Franco (ACMSP, processo nº 4-1-2, fls. 17) no ano de 1689, e entre Matias de Mendonça e Luzia Leme (ACMSP, processo nº 4-1-1-, fls. 51.). A partir de 1667 (data do mais antigo processo), os oradores, com impedimento por parentesco, utilizaram à larga esse artifício nos processos, o que faz supor que seria uma simples estratégia para se obter a necessária dispensa, a tal ponto de se por em dúvida a veracidade da ascendência indígena dos oradores.

O impedimento consangüíneo no Direito Canônico produzia sérios problemas sociais na comunidade. Em parte, porque em um núcleo pequeno o parentesco facilitaria e tornaria muito habitual o relacionamento entre parentes próximos, o que era visto como incesto pela Igreja Católica. Maior problema ainda era o elevado custo para as despesas que correriam na dispensa matrimonial. Os lucros auferidos pelos bispos e vigários gerais eram grandes e eles não queriam abrir mão dessa fonte de renda. Como conseqüência, viam-se famílias, obviamente as menos dotadas, não constituídas pela bênção da Igreja e, inevitavelmente, uma certa libertinagem forçada pela situação. Esses reclamos eram costumeiramente dirigidos aos reis de Portugal que, na qualidade de Mestres da Ordem de Cristo, detinham importante parcela de poder na Igreja. Desta forma, a Rainha de Portugal, d. Maria I, percebendo essa grave situação que se instalara no Brasil, impetrou junto ao Papa, Pio VI, a bula, expedida em Roma a 6 de janeiro de 1790, que principia Magnam profecto Curam, onde se dava poder aos bispos do Brasil para dispensarem de graça "em todos os graus de parentesco (à exceção do primeiro de consangüinidade assim em linha reta, como em linha transversal, e do primeiro de afinidade em linha reta somente), cuja faculdade podem e devem subdlegar em qualquer presbítero capa e idôneo na conformidade da mesma bula."

A discussão acima veio exposta na Memória econômico-política da Capitania de São Paulo (MENDONÇA, Antônio Manoel de Mello Castro e. In Anais do Museu Paulista, vol. XV, São Paulo, 1961, pp. 98 e 99. O autor foi governador da capitania de São Paulo de 28 de junho de 1797 a 10 de novembro de 1802). Como bem observou a Profa. Dra. Eni de Mesquita Samara (As mulheres, o poder e a família, Secretaria de Estado da Cultura: São Paulo, s/d, pág. 91.), a citada bula papal tinha por intuito o de abreviar os processos de dispensa matrimonial, evitando a demora e diminuindo gastos. É difícil saber se ela foi adotada imediatamente ou se foi engavetada. Afinal, não servia aos interesses dos seus executores...

Nas dispensas matrimoniais, via de regra geral, os oradores faziam um discurso quase que igual nos vários processos ali pesquisados: as oradoras eram geralmente qualificadas como pobres (mesmo que não o fossem) e necessitadas do amparo de um marido; os oradores como capazes de as sustentar. Alegavam ainda que, em função do parentesco, os oradores freqüentavam a casa das oradoras e, não se consumando o matrimônio, elas ficariam mal vistas e faladas, dificultando a possibilidade de contraírem outro casamento. Para ilustrar, é interessante descrever parte da alegação dos depoentes, os oradores Manoel Joaquim Bueno de Azevedo e Ana Xavier Leite (ACMSP, processo nº 8-56-4156, fls. 20 em diante.), parentes no 4º grau de consangüinidade, em 1812:
"Que os oradores sam das principais familias da vila de Itu, onde sam moradores, e por estarem naquela vila todas as boas familias ligadas em parentesco, nam pode a oradora axar consorte de sua qualidade, que nam seja parente, e nem tem dote suficiente para procurar consorcio fora da terra."

A Igreja quase sempre se rendia aos argumentos, inclusive como forma de apaziguar os ânimos que se levantavam quando a dispensa parecia se tornar difícil e as partes envolvidas pegavam em armas para lavar a honra da noiva. O rígido controle das dispensas matrimoniais, através dos bispos nas suas dioceses perdurou até, pelo menos, a Independência do Brasil. Dependendo da autoridade do bispo ou do conservadorismo da região, avançou por muitos anos mais. Essa transferência da autoridade do Rei de Portugal para a do Imperador do Brasil, acrescida da liberalidade que dominava a Igreja no Brasil, promoveu um contínuo relaxamento na questão, observando-se casamentos entre parentes dentro do grau proibido sem a mínima menção de impedimento. Pelo atual Código de Direito Canônico (promulgado por João Paulo II, Papa, 7ª ed., Edições Loyola, São Paulo, 1983, cânones 1091 e 1092), além dos parentescos por linhas diretas (pais, avós, etc.) só ficam proibidos os casamentos entre o que denominamos de primos irmãos (quando pelo menos um dos avós é comum) e entre tio (a)- avô (ó) e sobrinha (o)- neta (o).

As Ordenações do Reino de Portugal acompanhavam a contagem de parentesco do Direito Canônico que consistia em contar o número de gerações (grau) do tronco comum aos dois dos seus descendentes. Havendo igual distância do tronco dava-se o nome de parentesco igual; caso contrário, dava-se o nome de parentesco desigual. Assim, dois bisnetos são parentes no 3º grau igual, dois trinetos são parentes no 4º grau igual; enquanto que a relação de um bisneto com um trineto é a de 3º para o 4º grau. Havendo mais de um parentesco (ainda dentro do grau proibido) recebia o nome de parentesco misto. Deve-se salientar que era indiferente se a ligação se dava por via legítima (através do matrimônio) ou não.


autor: Marcelo Meira Amaral Bogaciovas
publicado em 08-02-2021
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